O que o The Washington Post pode ensinar às "empresas de mídia"

rafaelsbarai
YOUPIX
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8 min readSep 16, 2015

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Rafael Sbarai, 28 anos, é jornalista, mestre em Tecnologia e Mercado, integrante da equipe de produto do GloboEsporte.com e professor dos cursos de pós-graduação de Comunicação da FAAP e do Mackenzie

Ligar o conceito de inovação ao tradicional jornal americano The Washington Post não é um ato gratuito. A publicação, fundada em 1877, celebrou em agosto um dos capítulos mais interessantes da história moderna do Jornalismo: comemorou dois anos de vida sob o comando de um titã acostumado a fazer dinheiro na internet — Jeff Bezos, fundador e CEO do gigante de varejo digital Amazon. Por 250 milhões de dólares, Bezos abocanhou uma das maiores referências editoriais do mundo. Desde então, luta bravamente para se adequar à nova realidade digital. Ao produzir permanentes investimentos em tecnologia, o executivo mostra um caminho árduo, sinuoso, mas que saltam aos olhos de seus concorrentes diretos pela capacidade de renovação da empresa — digna de muito apreço.

O esforço hercúleo de tornar-se novamente uma companhia atraente para profissionais criativos partiu de Bezos, em um raro processo em empresas de mídia: a união entre o vice-presidente de tecnologia do grupo (Chief Information Officer, em inglês), o indiano Shailesh Prakash, e o americano Martin Baron, editor-executivo.

Shailesh Prakash (à esq.) e Martin Baron, os pilares do The Washington Post. Foto: The Washington Post/Divulgação

Prakash foi o motor por disseminar a cultura do desenvolvimento à empresa ao distribuir programadores aos times comercial e editorial. Em um ano, recrutou 40 profissionais — hoje, há 47 desenvolvedores na redação, número quase 12 vezes maior se comparado ao de 2011. O objetivo é nobre: inovar e desenvolver produtos jornalísticos com maior agilidade. "A era digital significa também que temos de nos tornar uma empresa de tecnologia", diz Baron. Hoje, são mais de 220 engenheiros na companhia. É um discurso que, por ora, resiste à teimosia dos fatos.

A primeira missão de otimizar processos e romper barreiras já tem um nome e representa um marco para a empresa e para o Jornalismo: Arc, plataforma concebida por meio de um trabalho multidisciplinar entre as equipes de engenharia e editorial para atender necessidades de uma redação que passa por constantes mudanças. Foi por meio do Arc que, por exemplo, a publicação apresentou há duas semanas mudanças no visual de sua página principal (imagem à esquerda), mais veloz e dinâmica.

O Arc e a anexação de programadores ao time editorial contribuíram positivamente para acabar com as preocupantes filas de prioridades e os recorrentes descontentamentos de jornalistas que, ávidos por novidades, têm suas ideias interrompidas por questões tecnológicas. Um exemplo: hoje, a redação tem condição de criar newsgames e quizzes a partir de oito formatos definidos por seus engenheiros. Não ha longas e cansativas reuniões para convencer a criação do produto, muito menos discursos técnicos para revelar "custos pelo esforço"— argumento usado em nove a cada dez redações.

Cenário do WaPo em quatro anos: mais desenvolvedores, mais jornalistas. Palestra ministrada entre Baron e Prakash durante o SXSW 2015, em Austin, Estados Unidos

Outro: por meio do Pagebuilder, recuso do Arc, é possível visualizar o site do The Washington Post e editar o conteúdo conforme é visualizado ao leitor. A partir de apenas um clique, é possível adicionar ou excluir funcionalidades presentes em um texto, além de escolher formato de apresentação de reportagens. É o fim do árduo trabalho de produzir desenhos de páginas para conteúdos de grande fôlego.

Manobra é símbolo das mudanças de estrutura da WaPo

Concomitante ao desenvolvimento do Arc, dois escritórios voltados exclusivamente ao desenvolvimento e design foram concebidos: um em Reston, Virginia, outro em Nova York. São ambientes prósperos e escolhidos a dedo estrategicamente pela simples razão da aproximação de startups locais, que apresentam produtos e situações de extrema incerteza, sob a lógica de operação com lógica de experimentação rápida.

Futuras propostas para aprimorar o trabalho editorial também são ofertadas por meio Hackathons, maratonas de programação em que desenvolvedores, designers e especialistas em negócios trabalham por 24, 36 ou 48 horas ininterruptas na tentativa de solucionar problemas. Aberto aos olhos de convidados, o WaPo realizou em julho seu último evento, em Washington — com resultados espetaculares.

Prakash também foi o protagonista por transformar tecnologia em modelo de negócio — evidenciando que, por razões óbvias, o jornalismo não se sustenta apenas por publicidade: a comercialização do publicador de conteúdo (CMS) aos jornais locais. Com o tempo, as plataformas tornaram-se grande obstáculo em redações pela dificuldade de renovação imposta ao serviço — nem sempre atendiam as necessidades dos maiores interessados ali, os jornalistas. Além de um ambiente de armazenamento de reportagens, a publicação americana oferece sistema de personalização de publicidade, além de métricas exibidas no serviço. A plataforma já foi testada por jornais estudantis das universidades de Columbia, Yale e Maryland. É a estratégia de tratar software como mídia, um átimo a ser acrescido à receita.

Os jornais locais também receberam a oferta de um programa de parcerias, em que são oferecidos gratuitamente reportagens do WaPo aos assinantes das publicações consideradas, até então, concorrentes. Para tanto, o leitor precisava “apenas” digitar seu e-mail — uma moeda valiosa e que, consumida pela Amazon, de Bezos, conduziu à companhia em um novo patamar: a análise de dados, que revela preferências do consumidor. Desde 2002, o site possui um eficiente sistema de recomendações personalizadas, que exibe produtos baseados no histórico de navegação e compras do usuário. O número de publicações que assinaram, por ora, o acordo assusta: 270.

Evolução do Jornalismo passa obrigatoriamente por tecnologia

Em outra posição do balcão, na área editorial, a publicação conta com um símbolo do amadurecimento digital jornalístico. Baron, catapultado à condição de estrela, é um dos executivos de maior capacidade de visão de mercado editorial no mundo. Traduziu a transição do papel para o digital com a seguinte sentença:

“Estamos deixando uma casa, com a qual tínhamos uma familiaridade ímpar. Só nós a conhecíamos bem. Agora, nos deparamos com comportamentos não muito conhecidos por nós. Nossos vizinhos são mais jovens, mais ágeis. Com certo desdém, não estão interessados no que fizemos. Eles são os nativos; nós, os imigrantes. É a hora de ser humilde e aprendermos”

Em um ano, houve um pesado investimento editorial: mais de 100 jornalistas com conhecimento no universo digital foram contratados — sem uma demissão sequer com a razão social de cortes. Hoje, são 680 jornalistas que respiram os mesmos princípios editoriais da família Graham, ex-controladora do jornal. Há, por ora, mais sete vagas abertas.

Muitos projetos editoriais não decolaram evidentemente. Os experimentos em vídeo e dirigido às TVs, por exemplo, não ganharam a adesão do consumidor final. Mesmo que as ideias “fora da caixa” não sejam transformadas em sólidos negócios, os erros foram transformados em ingredientes jamais ignorados — aprimorados em eventuais novos projetos.

Até o momento, não se sabe se todos os processos listados — com exceção à comercialização do CMS — vieram acompanhados por receitas. As luzes, portanto, são lançadas aos resultados obtidos por meio do trabalho. É outra extensa lista.

Em fevereiro, o The Washington Post foi considerada a “empresa de mídia” mais inovadora, prêmio concedido pela respeitabilíssima publicação americana Fast Company. Em maio, a publicação ganhou mais um Pullitzer, o maior e mais tradicional prêmio do Jornalismo no mundo.

Em agosto, a empresa foi escolhida como a melhor publicação para investimentos publicitários e atendimento de suporte ao cliente, mesmo com a sombra das poderosas concorrências de The New York Times e Wall Street Journal. No mesmo mês, alcançou a marca de 53,5 milhões de visitantes únicos, acréscimo de 36% se comparado o mesmo período de 2014, segundo a comScore. É uma evolução nada desprezível.

O acesso por dispositivos móveis também cresceu: 38 milhões de usuários por smartphones e tablets, alta de 58% em um ano. Paulatinamente, constrói a sólida e internacional audiência desejada ardentemente por Bezos. Pela primeira vez nos últimos quatros anos, o número se aproxima ao do The New York Times.

Outro dado que impressiona é o de aproximação com os jovens: 4 a cada 10 leitores fazem parte da geração Milênio, caracterizada por pessoas que nasceram sob a influência da internet.

É impossível definir o que vai acontecer nos próximos anos: há muitos desafios a serem alcançados. O futuro do WaPo é digital, mas a maior parte de sua receita — assim como de seu concorrente The New York Timesvêm de publicidade impressa. Pior: a circulação continua a encolher. O campo de incerteza, a agrura, no entanto, dá lugar às estratégias agressivas e obsessão por novidade, ingredientes extintos em empresas de mídia que alçam a companhia americana a um grau mais alto — distantes, mas próximos aos do que respiram novos ares, casos de Google, Facebook e Apple. Um exemplo evidente do mundo no qual vivemos: apenas 31% de toda a receita de tablets e smartphones é dividida (a tapas) por todas as empresas de mídia nos EUA. Sozinho, o Facebook tem 37% — uma empresa com onze anos de vida e com uma capacidade espetacular de renovação.

É um cenário claudicante. O que se pode garantir, contudo, é que há alguém querendo fazer algo diferente na desenfreada corrida por conteúdo — e atenção. Pela primeira vez, há um executivo que soube ganhar dinheiro na internet com as mãos em uma empresa enraizada em modelos tradicionais. É a hora de arriscar — e acompanhar. O Jornalismo agradece.

Fotos: Esther Vargas, Esther Vargas, The Washington Post, Rafael Sbarai e Victoria Pickering.

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Journalist, Digital Product Manager at @CartolaFC (@RedeGlobo) and Fantasies Games, Business Model And Digital Journalism Professor at @FAAP and @CasperLibero